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Questões do Enem na mira de Bolsonaro são eficientes em testar conhecimento

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Foto: Aline Nascimento / G1

Para justificar o desejo de alterações no Enem e o veto a determinados temas, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e sua equipe têm criticado questões que classificaram como ideológicas -perguntas que, segundo eles, promoveriam “doutrinação” em vez de medir o conhecimento dos candidatos.
 

Mas análise estatística inédita feita pela reportagem mostra o contrário: questões que causaram polêmica entre conservadores foram eficientes em testar o conhecimento técnico dos participantes nas áreas avaliadas pelo exame.
 

O Enem começa neste domingo (21) e segue no próximo (28). A reportagem analisou 24 questões que foram criticadas por políticos conservadores, como Bolsonaro, ou que abordam a ditadura militar (1964-1985). Desde 2019, início da atual gestão, nenhuma questão sobre o regime caiu na prova, e integrantes do governo chegaram a dizer que o tema seria polêmico.
 

Segundo especialistas, pode ser considerada uma boa pergunta aquela que consegue discriminar os participantes de acordo com o nível de conhecimento, ou seja, alunos que dominam o tema vão melhor que aqueles com pouco aprendizado na área.
 

A partir de análise dos microdados do exame, a reportagem testou o desempenho de questões criticadas, presentes nas provas de linguagens e ciências humanas, segundo quatro critérios estabelecidos na literatura científica da área. Foram avaliadas todas as edições de 2009 a 2019.
 

Além da capacidade de discriminar participantes que dominam o conhecimento avaliado, foram levados em conta a relação entre o acerto no determinado item e nos demais, a chance de participantes de menor proficiência acertarem mais que alunos melhores e, por fim, se o item se comporta de acordo com o modelo TRI (Teoria da Resposta ao Item) de três parâmetros adotado pelo Enem para a correção das provas.
 

Dos 24 itens, apenas uma questão -do Enem 2016 e que tratava de ditaduras no Brasil e América Latina- não apresentou a qualidade esperada em um dos parâmetros avaliados. Quando se considera o conjunto dos critérios, porém, a avaliação é que a pergunta é satisfatória. As outras 23 tiveram o desempenho esperado em todos os pontos avaliados. Do total de itens analisados, 5 são questões que foram consideradas ideológicas pelos grupos conservadores e 19 abordam a ditadura.
 

Questionado, o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais) não respondeu. O governo tem aversão a perguntas que tragam, por exemplo, qualquer menção a questões de gênero.
 

No Enem de 2015, uma pergunta que citava a filósofa Simone de Beauvoir causou a ira de Bolsonaro. O item atendeu a todos os critérios de uma boa questão, porém.
 

Em meio a denúncias de assédio moral a servidores e pressão para interferência na prova, Bolsonaro disse na semana passada que o Enem começava a ficar com a “cara do governo” e voltou a atacar o exame.
 

Como revelou o jornal Folha de S.Paulo na sexta (19), o presidente chegou a pedir ao MEC (Ministério da Educação) que o Enem tratasse o golpe de 1964 como revolução. Em 2019, ano da primeira edição que não abordou a ditadura, o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub defendeu a ausência sob argumento de que era uma polêmica sem objetivo para a seleção de alunos para universidades.
 

“Como aqui no Brasil existe ainda uma coisa não pacificada de como foi o período do regime militar, o objetivo do Enem não é polemizar, e sim selecionar as melhores cabeças”, disse em janeiro de 2020. O atual chefe da pasta, Milton Ribeiro, tem repetido que a preocupação seria técnica, ao criticar itens de edições anteriores.
 

Ele já mencionou uma pergunta de 2018 que trazia, no texto de apoio, menção a um dialeto utilizado por travestis, o pajubá. Na época, Bolsonaro disse que o item supostamente iria “estimular a molecada a se interessar por isso”.
 

A questão, da prova de linguagens, exigia do candidato conhecimentos sobre dialetos, tema pertinente à variação linguística. Os dados mostram que o comportamento do item na prova seguiu o que se espera de uma boa questão: participantes mais bem preparados, e com melhor desempenho no exame, tiveram maior índice de acerto.
 

O modelo matemático adotado pelo exame, a chamada TRI, prevê itens calibrados de acordo com três parâmetros: discriminação (se diferencia os candidatos de acordo com o nível de conhecimento naquele tema), dificuldade e probabilidade de acerto casual. A nota dos participantes depende não só do número de acertos, mas também entra no cálculo quais perguntas foram respondidas corretamente.
 

Especialista em avaliação e TRI, o professor Tufi Machado Soares, da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora), explica que uma boa questão tem que garantir um bom ajuste com o modelo usado na pontuação, a discriminação entre participantes de proficiências diferentes e deve refletir com qualidade as matrizes de referência no teste.
 

“A questão estabelece função que associa a probabilidade de acerto com nível de proficiência do aluno. E questões com maior discriminação aumentam a precisão da medida dos alunos”, diz. Estudos indicam, segundo Tufi, que o nível de precisão da proficiência é maior com a TRI do que pontuação clássica.
 

Presidente do Inep quando o Enem adotou o TRI, o professor da USP Reynaldo Fernandes diz que o modelo é mais sofisticado para extrair informações das respostas. Mas “a alma de qualquer” prova são os itens.
 

O governo passa por uma crise que envolve denúncias de interferência no conteúdo da prova e assédio moral de servidores. O ministro Ribeiro tem reafirmado que não houve interferência, em contraste com suas próprias declarações –ele já disse que não permitiria questões que considerasse inadequadas, prometeu que olharia a prova pessoalmente, e depois recuou.
 

Em 2019, o Inep criou uma comissão que censurou questões do Enem. Em junho deste ano, a Folha revelou que uma portaria do Inep estabelecia uma espécie de “tribunal ideológico”, com a criação de uma nova instância permanente de análise dos itens das avaliações da educação básica.
 

O documento falava em não permitir “questões subjetivas” e atenção a “valores morais” e ia contra posicionamento técnico. O órgão engavetou a portaria depois da repercussão.
 

Reynaldo Fernandes afirma que a discussão sobre o que perguntar nas provas vai existir sempre, e não é ruim que ocorra na sociedade. “Mas essas disputas devem ser discutidas entre acadêmicos. Não é por que eu sou governo e acho que não teve ditadura, que não teve holocausto, e mudo. O Enem não é o local para esse debate.”

Fonte: Bahia Notícias

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